sábado, 1 de agosto de 2020

um comboio da cp teve um acidente com uma máquina da ip


Morreram pessoas.
Lembrei-me do que escrevi acerca da cp a pretexto de uma entrevista de um camarada doutor e a greve dos camionistas:
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De há muito julgo saber que uma economia assente em monopólios de rodovia está inteiramente refém de quem neles trabalha. Uma economia como a nossa, que há 45 anos atrás, a estrear-se nessa coisa das eleições, podia  viajar de comboio. Em comboios limpos, cuidados, pontuais, a circular em rede que se estendia por todo o país. Para pessoas e mercadorias. Sei isso até porque o aprendíamos na escola. Era a CP.
Depois, veio a democracia e as eleições. E como nem todos os que iam a votos podiam ser eleitos, os eleitos pensaram em maneiras de desenrascar os camaradas. Até porque noutro ano qualquer podia calhar-lhes a eles ficarem mais abaixo na lista de elegíveis. E pensaram: 
“-Temos aqui a CP e tu podes ser o doutor-engenheiro-presidente-ou-assim. Arranja-se carro com motorista fardado, como deve ser, cartão de crédito para a tua patroa ir às compras, tudo como se fosses ministro. O que é que achas?”

Foi-se achando bem.
Mas depois veio a filha, o sobrinho e o diabo a quatro que nem a família real saudita.
Como fazer, como fazer?
Conselho de ministros extraordinário: “-Ora bem, as nacionalizações já não chegam para todos, tenho o Manel lá fora aos berros, como é que vamos fazer isto?” 
Foi mais ou menos assim que um camarada qualquer se lembrou que a CP era um “elefante ingovernável”, que de acordo com as mais modernas teorias de gestão “small is beautifull” [foi mesmo assim que ele disse, em estrangeiro, para impressionar] e a CP devia ser desmembrada em várias empresas: uma empresa para os comboios propriamente ditos – que podia continuar a ser a CP-, uma empresa para os carris e catenárias –REFER, ou qualquer coisa assim -, uma empresa para as chaves de parafusos quando alguma coisa se desaperta – EMEF ou qualquer coisa do género-, uma empresa para as bilheteiras, etc. Agastado com a silenciosa entrevação com que o ouviam, disse a certa altura: “-Reparem camaradas ministros, eu posso continuar aqui pela noite dentro a criar empresas… O que é que os senhores acham?” 
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Há por aqui algumas gralhas, como já devem ter reparado: a "empresa" que trata da manutenção das vias chama-se ou passou a chamar-se ip...
Mas o texto tinha três partes e agora que esta gente se prepara para torrar gigantescas quantias de dinheiro em hidrogénios afins aqui deixo a continuação do texto:
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Tínhamos ficado naquela parte em que os comboios da CP iam fazendo
pouca terra num oceano de empresas públicas geridas pelo Manel e camaradas. E como comecei com subtítulos, vou continuar com eles.

um passageiro melancólico aqui, uma saca de cimento ali

Ao mesmo tipo de assalto a que a CP foi sujeita, foram sujeitas mais ou menos todas as outras grandes empresas de transporte de mercadorias e passageiros. Quando eram insuficientes para albergarem todos os camaradas do Manel que se reproduziam como coelhos, nacionalizavam-se as que fossem necessárias a tal efeito. Na expectativa de vida mais tranquila e gorda, no acoito do patrão incorpóreo que é o estado, os camaradas operários eram facilmente encorajados a exigir as nacionalizações em nome do socialismo. Não é só de agora que há senhores a acharem coisas que fazem o clima de opinião adequado à abarrotada vida do Manel.
Com o tempo, as massas foram-se livrando dos constrangimentos associados ao uso de comboios que se esvaíam de movimento em braços de prata.* Como iam podendo, fora das grandes urbes, as massas atomizaram-se no transporte privado e ao volante dos seus toyotas. Nas zonas urbanas, como se vem vendo, a gestão das falências das empresas públicas vem correndo ao sabor dos calendários eleitorais. E outro tanto sucede ao ilusório poder da rua, que se tornou quase monopólio dos camaradas trabalhadores do sector público. Desumanamente desvalorizados pela lei da oferta e da procura, os “trabalhadores em luta” faziam manifestações que eram um equivalente bastante exato das procissões religiosas; com o calendário eleitoral a substituir o religioso, com os seus clérigos à cabeça na pessoa de dirigentes sindicais, com as alfaias na forma de apitos, bandeiras, boinas à Guevara e muita solenidade nos punhos cerrados. Com o fim do trabalho como o bem escasso que havia sido até ao fim dos anos sessenta e primeira metade dos anos setenta, com o fim da emigração em massa para França, Alemanha e Luxemburgo, com a progressiva mecanização de empresas e serviços, os “trabalhadores em luta” e as organizações sindicais que agiam em seu nome tornaram-se fenómenos quase folclóricos, olhados com reserva, senão mesmo com aberta hostilidade por parte dos eventuais atormentados pela “luta”.

Extraordinariamente, é neste cenário pós-sindical que o camarada doutor Manuel Carvalho da Silva diz agora, a propósito da mais recente greve dos camionistas, que as greves “ocorrem ciclicamente […]mas agora a novidade é a mediatização do protesto e o contexto político”.  O camarada doutor acha portanto que as outras greves que “ocorrem ciclicamente” não são mediatizadas e acontecem fora de um contexto político. Nada como ir a doutor-sociólogo para nos tornarmos sofisticados nos argumentos. Ainda assim concede que “[é] natural que trabalhadores tentem resolver os seus problemas desta forma, através da greve.” Mas -e aqui vem ele, o “mas”- “…quando o problema se desloca para a política partidária, esquece-se o problema inicial entre os trabalhadores e os patrões.” Com isto, o ex-secretário-geral da CGTP estava “…referindo o aproveitamento dos partidos de direita deste conflito laboral”, esclarecem-nos os incisivos jornalistas da empresa pública Lusa, autores do artigo do Público que não é público e era do senhor Belmiro que se despediu de nós todos sem que alguma vez fosse vítima da ignomínia de ser tratado de “merceeiro”, como abundantemente acontece com o seu colega Soares dos Santos, da Fundação.
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*- Não sou assim tão dado à poesia quanto esta frase possa fazer supor: a certa altura dos anos oitenta vivia na Parede e trabalhava em Azambuja. Deslocava-me em duas linhas da CP e num autocarro da Carris. Num desses dias que não esqueço, depois de esperar na estação de Azambuja ao longo de seis horas o regresso a casa, o comboio em que seguia –em consequência de mais um turno de greve dos “maquinistas” da CP-, às quatro da manhã, depois de um dia de trabalho,  imobilizou-se em Braço de Prata. Sem qualquer aviso ou informação. Depois de coisa de meia hora ou mais, os passageiros começaram a desconfiar que por ali podiam pernoitar… De modos que se lançaram à linha a caminhar até Santa Apolónia. Percebem agora vossas senhorias que não há por aqui qualquer liberdade poética na frase?
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obs: Os textos aqui reproduzidos, no original, através de vários links, remetem para várias páginas que os complementam. 




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