sábado, 22 de fevereiro de 2025

youn sun nah

excerto do manuscrito encontrado no rei das enguias

“Não resistiu quando numa noite de agosto se abeirou do avião. Primeiro com espanto, depois com apreensão e finalmente com um entusiasmo completamente imbecil quando se deu à condição de passageiro. Sempre desejara voar num DC-3. Ainda existem algumas centenas perfeitamente operacionais, embora tenham deixado de ser produzidos por volta de 1945. As bochechas nos pneus do trem de aterragem, o lixo e as ervas daninhas em volta deles, o aeródromo que mais se assemelhava a um princípio de urbanização deixado às ortigas e ao entulho, isso foram algumas das coisas em que reparou naquela primeira impressão que o deixou apreensivo. 
A luz amarelada de candeeiros razoavelmente afastados não deixava ver grande coisa. Dava para apreciar a cabine, o nariz apontado ao céu escuro e uma fuselagem que parecia contrariada em terra. Foram essas coisas que o deixaram na euforia imbecil que o fez avançar. Os outros passageiros – experimentando o mesmo espanto e apreensão, mas com juízo suficiente para não irem além dessas coisas - ao verem a sua afoiteza devem ter pensado que ‘aquele senhor deve saber imenso de aviões’ e acabaram por avançar também, embora com menos entusiasmo e mais pensativos. 
Acomodaram-se nos lugares com a colaboração de um tipo que manejava uma lanterna porque o avião estava completamente às escuras. As luzes só se acenderam com algumas hesitações no momento em que o piloto ligou os motores. Enfim, digo que eram os motores, mas também podia ser o barulho de um desses geradores que os feirantes usam para as barracas de farturas. 
Estava muito cansado, viajara de autocarro durante toda a tarde e parte da noite com uma paragem prolongada em Alcácer do Sal por via da sede e de umas bifanas. O avião abanou, julgou ver um tipo com ar de arrumador a pendurar-se numa das asas, mas estava escuro e pensou que aquilo era por causa de alguma coisa que tinha bebido. Adormeceu sem pensar mais no assunto, apesar do barulho. Chegaram de madrugada a um aeródromo em tudo semelhante àquele de onde haviam partido. Um autocarro velho e com matrículas desenhadas em papelão levou-os para o hotel nos arredores de Žarnovica por uma estrada de terra batida. A velhota que seguia a seu lado remordeu qualquer coisa em desabono de Fidel a pretexto de ‘miseráveis infraestruturas’ e ‘de qualquer modo, para a frota de automóveis que eles têm…’ Tudo isto a fingir que falava para a neta porque o homem não se deu ao trabalho de lhe lembrar que não estava em Cuba e que ‘os comunistas’ já não mandavam na Eslováquia. 
O hotel tinha algumas semelhanças com os que se podem ver por Bratislava, com a diferença de que só tinha rés-do-chão, uma coisa a arremedar um desses estaleiros que se fazem por alturas da construção de autoestradas e estádios de futebol. Tirando isso a zona era quase agradável, basicamente um prado com um eucaliptal ao fundo. Era esquisita aquela coisa do eucaliptal. O eucaliptal e a azinheira que havia perto da recepção, mas não ligou. 
Passou quatro dias sentado ao sol com um livreco numa daquelas cadeiras de plástico injetado. Para além das bebidas mais comuns em qualquer parte do mundo, havia Adega Cooperativa de Borba (tinto), Macieira e Licor Beirão. O pessoal parecia não falar mais nada além do eslovaco ou lá o que era aquilo, mas para seu espanto, também parecia não ter dificuldades em compreender o português. Por uma razão qualquer, o pessoal sujeitava-o a uma espécie de segregação, evitando o seu convívio com os outros hóspedes o que lhe calhou que nem ginjas já que o destino fora criteriosamente selecionado a fim de minimizar as possibilidades de tais convívios. Ainda assim, ao terceiro dia não houve modo de evitar a velhota a perguntar pela Zaida, esbaforida: 
‘- Não, não vi a pequena, mas não pode estar longe porque isto é pequeno.’ - respondeu. ‘-Ai aquela rapariga… Já viu o que o regime faz nestes lugares para turistas? Nem sequer empregam o povo nestes hotéis para eles não verem como é no ocidente. Só há russas, ucranianas, romenas e aquela brasileira que trabalha na cozinha. Cubanos, nem um. Por falar em cozinha, não me lembro de alguma vez ter comido uns pezinhos de coentrada como os que comi ontem.’ 
- Pezinhos de coentrada??’ 
‘-Ó larócas, pezinhos de coentrada. E se estavam bons… Um pouco puxadinhos para os meus intestinos, mas valeu a pena.’ 
‘-Puxadinhos???’ 
‘-Sim, picantes. Os meus intestinos barafustam com o picante.’ 
Essa foi a única ocasião em que se exaltou. Abalou dali direitinho ao refeitório, quase a gritar: 
‘- Com que então, pezinhos de coentrada, não é? E puxadinhos! E para mim só há a porcaria dos bitoques, não é?’ 
Nesse dia comeu pezinhos de coentrada. Que estavam maravilhosos, é preciso reconhecer. Mas essa foi também a única ocasião em que fingiram não compreender o que ele dizia. 
Nunca mais pensou neste assunto da Eslováquia até há dias quando reconheceu a velhota na televisão a denunciar a agência de viagens: 
‘- Andava eu à procura da minha Zaida, quando vejo um homenzeco e pergunto-lhe: ‘Ha visto mi chica?’ Foi aí que eu percebi que não estava em Cuba, mas na Herdade da Ribeira Seca, no Alentejo.’

 Não se queixou. A viagem fora barata e os pezinhos estavam ótimos. Até achou graça à ideia. Embora a tivessem comprometido em coisas escusadas, pensou. Afinal de contas, custava assim tanto mandar fazer umas chapas de matrícula ou abdicar do Licor Beirão? Pelo amor da santa… Licor Beirão na Eslováquia? 
A única coisa que o enfureceu em toda aquela história foi a grosseira obstinação da cabra da agência ao impingir-lhe o destino de Cuba quando ele queria ir para a Eslováquia.”

mafra




 

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

excerto do manuscrito encontrado no rei das enguias

""-Óh Aníbal, conta lá um livro!",  pediu a Berta na mesa ao lado.
O Aníbal já tinha comido a sopa e estava de saída. Ponderou mais uma vez a evidência de que a Berta era bem boa de mamas, pediu uma amarelinha à Júlia que ficou por perto na expectativa, e a elas se juntaram todos os que por ali estavam.
Ainda a pensar nas mamas da Berta, lá arrancou ele da página um, sempre a olhar em frente como se estivesse a ler em voz alta, ausente.
Quando parava de falar, o pessoal aproveitava para rir e não eram poucos os que, divertidos, batiam com a palma das mãos nos tampos de pedra.
Enfastiado, o Aníbal aproveitava para passear os beiços pelo bordo do cálice de amarelinha. Quando se esfumava a algazarra, recomeçava: “Uma ocasião, …”
E por aí a fora até à página 87. Nessa altura escorropichou o cálice, levantou-se, colocou as mãos nos rins com um esgar de aflijo e disse:
-Bom, agora ide pó caralho que amanhã é dia de trabalho e eu quero ver o telejornal."

franco battiato

mafra


 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

ainda acerca dos encontros de paris

Macron é uma criatura patética que gosta de usar sapatos de tacão alto e essa é a única razão porque “convocou” os “principais líderes europeus”. Alegadamente para “discutir a invasão da Ucrânia pela Rússia e reforçar a sua posição comum no âmbito do processo de paz”.
Não compreendo como é que os “principais líderes” do quer que seja aceitam ser “convocados” por um pateta para debater um assunto de que nunca foram parte. Senão para participarem nas despesas.
Porque é que não pedem ao sr. mark rutte que agende uma reunião da OTAN, só para ver se o patrão deixa?
Será que nunca vão compreender?
E aproveitando a falta de convite, em vez de ficarem amofinados, porque é que os “líderes menos importantes” não aproveitam para se rasparem de mais despesas com um assunto em que têm tudo a perder e nada a ganhar?



a otan e os gastos na defesa da europa

Um texto de Miguel Morgado publicado ontem online  desenvolve duas ideias mais ou menos recorrentes que considero fundamentalmente erradas e passo a comentar

1. A ideia de que “[a] Europa fingia que não tinha problemas de segurança que exigissem a existência de forças armadas eficazes, e muito menos a disposição cultural para defender pela força das armas a sua independência e a sua liberdade.”

Na realidade a Europa não tinha nem tem hoje verdadeiros problemas de segurança que derivem de ameaças externas. Além da dos próprios EUA. Que depois de fragmentarem a Iugoslávia centraram na Ucrânia o seu confronto imperial com a Rússia. A Rússia pós-Gorbachev, depois da dissolução do pacto de Varsóvia, é um inimigo que nos vem sendo vendido pelos EUA. A guerra por procuração que impuseram à Europa e à Rússia na fronteira desta com a Ucrânia faz parte da teoria. Nunca foi uma ameaça real senão a partir da “revolução” laranja. As tensões que no passado deram origem a tantos conflitos entre os estados europeus foram largamente mitigadas com as suas adesões à UE. E não é só a Europa que vive uma paz das nações. O mundo vive consideravelmente em paz e o que remanesce de conflitos é largamente o que deflecte das heranças do colonialismo e da doutrina imperial americana já sem mundo ou condições morais de exercício. Neste contexto, a OTAN, com evidencia de enormes sinais de cansaço, para mais não serve senão para oferecer honorabilidade diplomática a operações militares realizadas à revelia do direito internacional.
É assim perfeitamente compreensível que nunca tenhamos sentido uma grande “disposição cultural para a defender pela força das armas”.

2. A ideia de que “… ano após anos todos os Estados-membros da UE praticamente sem excepção se tornaram especialistas a vigarizar as contas exigíveis dos gastos em defesa – os famosos 2% do PIB em despesas globais com a defesa e os convenientemente esquecidos 20% dessa despesa em equipamento militar.”

A única vigarice foi a de os líderes europeus contemporizarem com a ideia de risco que ia sendo vendida aos seus eleitores sem realmente acreditarem nela. Mas há boas e poderosas razões para terem procedido assim. A partir de certa altura – com Reagan - a administração americana abandonou a ideia de que o poder militar e a hegemonia tinham custos e substituiu-a por uma outra, menos benigna e muito mais barata, em que essas coisas têm um preço que pode e deve ser facturado em nome das nações “ocupadas”. Como nos tempos de Sun Tzu. Isso acontece não porque lhes pareça razoável, mas porque deixaram de ter dinheiro para pagar a factura. Não o admitem, mas isso já não é segredo para ninguém.
Num livro editado já há mais de uma década, Brzezinski dedica uma terceira parte ao assunto da hegemonia americana. Que intitula por “The world after America: by 2025, not chinese but chaotic”. Aí pode ler-se: “Enquanto uma crise repentina e massiva do sistema americano produziria uma rápida reação em cadeia levando ao caos político e econômico global, a uma deriva constante da América em direção a uma decadência cada vez mais generalizada e/ou a uma guerra infinitamente mais ampla com o Islão dificilmente produziria, mesmo em 2025, a 'coroação' de um sucessor global eficaz. Até lá, nenhuma potência estará pronta para exercer o papel que o mundo, após a queda da União Soviética em 1991, esperava que os Estados Unidos desempenhassem. Mais provável seria uma fase prolongada de realinhamentos um tanto inconclusivos e um tanto caóticos do poder global e regional, sem grandes vencedores e muitos mais perdedores, em um cenário de incerteza internacional e até mesmo de riscos potencialmente fatais para o bem-estar global.”*
O texto procede na análise de estimativas e projecções comparadas (EU, UE, China e Japão) e é só aí que, por momentos, Brzezinski parece um pouco menos sombrio. Sucede que a China em pouco mais de 10 anos superou todas as estimativas, a única coisa em que Brzezinski não parece ter sido extraordinariamente premonitório. Porque depois continua com a enumeração dos estados geopoliticamente mais ameaçados - dos quais o Paquistão é o único que ainda vai escapando aos noticiários -, e vai até a um capítulo que designou por “Fim da boa vizinhança”. Exactamente. Referindo-se ao México e ao Canadá.

3. como gastar

Se a Europa andou bem no modo como não investiu na OTAN - fundamentalmente dedicada à defesa de interesses exógenos depois do fim da guerra fria – precisa agora de investir numa solução defensiva partilhada em exclusivo pelos estados membros da União Europeia e em função de um cenário geoestratégico em que os EUA enfrentam o seu crepúsculo enquanto superpotência. Um investimento ponderado na proporção dos riscos e exclusivamente em benefício das indústrias europeias. Com os meios de defesa a serem considerados em função do seu real valor em situações de conflito. Evidentemente, a gestão dos orçamentos militares é competência de painéis de especialistas militares. Mas algumas explicações devem ser dadas. Não se compreende, por exemplo, o que leva á compra de um modelo de avião militar por um grande número de estados europeus (também com compra mais ou menos anunciada por Portugal), que não é produzido na Europa, que é considerado mau e que tem preço de aquisição e custos operacionais considerados absurdos por especialistas respeitados. Não se compreende igualmente que se pondere ganhar as batalhas de hoje com os meios de defesa da II guerra mundial. Enfim, mais uma vez, sendo assunto para especialistas em defesa, continuo sem compreender que se invista em blindados quando até os carteis mexicanos usam drones para os destruir... E sendo tão sofisticado o armamento americano, não se percebe que tenham perdido todas as guerras em que os usam. Talvez com a excepção da invasão da ilha de Granada. No âmbito da campanha para a reeleição de R. Reagan.
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*Zbigniew Brzezinski ,“Strategic Vision – America and the crisis of global power”, Basic Books , 2012, p. 78

mathias duplessy

mafra


 

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

a liberdade de expressão e o "discurso inaceitável"

O âmago do discurso de Vance na conferência de Munique dedicada à segurança foi a liberdade de expressão na Europa. Fê-lo com enorme delicadeza, sem sobranceria, apenas em tom de quem convida a uma reflexão acerca dos mais recentes episódios que ilustram dúvidas relativas à boa saúde desse elementar princípio das sociedades democráticas. No exemplo do amordaçar as “redes sociais” a pretexto de regulações, ou do gravíssimo episódio recentemente ocorrido na Roménia em que o resultado de uma eleição livre foi anulado sob os pretextos mais ridículos. Evidentemente, não ficaria bem a Vance mencionar o art.º. 2f. do Regulamento (UE) n.º 833/2014, conforme alterado em 1 de março de 2022 que determina a censura - completamente inconstitucional à luz da legislação de vários países da UE – de vários órgãos de informação russos, tratando os cidadãos europeus como sujeitos mentalmente incapazes de distinguir a propaganda dos factos.
 
O actual ministro da defesa da Alemanha considerou esse discurso “inaceitável”. Repita-se, um discurso que convidava à reflexão acerca do estado de saúde da liberdade de expressão, princípio fundador das democracias.



de quem serve e de quem manda

Quem se comporta como servo não merece sentar-se à mesa de quem manda. 
Hoje, em Paris, sentam-se à mesa da cozinha.

moriarty

mafra


 

sábado, 15 de fevereiro de 2025

migrações

Nos últimos anos -2,3,4...- aparecem subitamente em bando aqui pelo vale e abancam-se pelos cinamomos do jardim. Durante alguns momentos empanturram-se das sementes. Venenosas, excepto para as aves. Voam depois para as de um vizinho, algumas dezenas de metros mais à frente. Sempre assim, de este para oeste, em raide.
Chegam todos sem papéis, penso que vindos de lugares mais amenos. Porque aqui faz um gelo que não combina com o exotismo dos seus verdes. Comem e vão-se embora.
Gosto de os ver.



chantal chamberland

mafra