O Aníbal foi ao café como já faz há mais de trinta anos.
Estavam lá as pessoas do costume que ultimamente são quatro. Estava o David que
chega sempre primeiro e que os outros encontram sempre a fazer coisas
intelectuais; a desenhar, a ler um livro ou a rabiscar num caderno com letra muito
miudinha e certinha mas que ninguém consegue ler e embora ninguém o diga, toda
a gente desconfia que nem ele próprio o consegue fazer. Depois chega o Daniel
que por vezes também vem com o David. O Daniel alapa-se sobre uma folhinha A5
com uma caneta BIC e ao fim de coisa de um mês sai dali ponta seca de ourives
que só visto, desenhos que até podiam estar em notas de quinhentos e que deixam
a malta a pensar. E estava o Paulo que é o dono do café e o maior culpado de
agora quase não haver fumo. É bom tipo mas tem um bocadinho de mau feitio e uma
vez até disse a um cliente que não lhe servia nenhuma porra de panaché porque
isso era bebida de putas. A malta desconfia que se lhe tinha acabado o xarope de
groselha e que foi só por isso que se pôs aos murros no balcão daquela maneira.
Desta vez não ouve discussão por causa do jogo mas por causa do Moreira que por
vezes dá lá um salto, que toda a gente tem por pessoa séria e pacata, que fica
sempre a ver o jogo e habitualmente não diz nada. Fica assim ali sentado a ver
o jogo como mais ninguém sabe fazer. Disse o Moreira que se tiver num sítio que
frequente por hábito fica com dores de cabeça e o peito arde-lhe ao fim de
trinta minutos. Mas se for num sítio onde nunca tenha estado, os mesmos
sintomas só aparecem ao fim de quatro horas. Isto em espaços fechados porque se
for na rua ou no campo não sente nada a não ser o ardor no peito quando corre.
A toda a gente isto pareceu treta mas dito por quem foi dito
- alguém que nunca mente, é sacristão, ajuda o padre e dá boleia a toda a gente
- pareceu estranho.
O Aníbal dessa vez não disse nada porque não quis ser
injusto.

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