segunda-feira, 14 de março de 2016

“alentejo prometido”

Apreensivo com a possibilidade de o encontrar esgotado, na passada quarta-feira lá comprei o “Alentejo prometido” num salto ao pingo doce à hora de almoço.

Bem vistas as coisas, a apreensão era completamente injustificada; as pessoas não desatam a comprar livros só porque alguns grunhos se decidem a queimá-los.

São 107 páginas que li com gosto ao serão do próprio dia em que as comprei.

Há medida que ia avançando no texto, aumentava a minha perplexidade com os arrebatamentos a que o livro tinha dado origem. Há até por aí uma “cientista social” que escreveu terem-se feito “centenas de comentários cultos” que “milhares de pessoas colocaram em rede” contra “o racismo” do autor e “na defesa da democracia e da verdade”.

Na realidade, despojado da ossatura da paisagem – que só em raras ocasiões é trazida ao caso - quase tudo o que no livro se escreve acerca dos alentejanos poderia ser escrito acerca dos habitantes da maioria das regiões do país. Tivesse igual engenho, até eu o podia ter escrito a propósito dos estremenhos, nativo que sou de região bem mais próspera e fértil. E razão tem Rentes de Carvalho quando acusa o autor de fantasias ao enlevar-se pelas gentes do norte. Mas creio que se engana quando escreve que o autor “desanca a sua terra e a sua gente”. O que o autor desanca – ainda que talvez nem sempre se dê conta disso e até o negue explicitamente no assunto dos suicídios – é a pobreza extrema e a perenidade dos sinais que ela entalha até em gerações que a já não vivem ou não vivem com a mesma intensidade.

Esses sinais desencanta-os o autor nas histórias de família que aparecem sempre esfumadas em silêncios (emaranhadas em toscas fantasias, no meu caso); só à custa de muitas manhas se chega a assomos de verdade. A curiosidade não se esfuma sem cerimónia ou cuidados. Pacientemente juntando as peças, chegamos ao fim com qualquer coisa com que não é possível simpatizar; por todo o lado o padrão da mais extrema miséria.

E quando diz, por exemplo que “o Alentejo foi povoado com o refugo do norte” (pág. 56) refere-se a “nobres de segunda linha”. (Veja-se o que acerca destes “nobres alentejanos” escreveu Thomas Owen, por exemplo…). Mas até entre estes Henrique Raposo descobre heróis que levam muito a sério coisas de honra. (pág. 61-62).

A “omertà” como código de conduta que atribui aos alentejanos estará por todo o lado; no “seu” Alentejo, tanto quanto pela minha Estremadura. E ao contrário da bufaria que tem origem na indigência moral, o código do silêncio é “a desconfiança [que o Alentejano] derrama sobre qualquer forma de poder (estado, igreja, patronato, […]).” (pág. 63) Não será por acaso que “omertà” significa “humildade” e tem origem em contextos socialmente semelhantes.

Até a curiosa “sociologia” dos cemitérios (pág. 73), cuidando o autor que dá notícia de uma especificidade alentejana, é rigorosamente igual à que recordo da minha (então) vila estremenha.

Em todo o livro, a única coisa que roça a incompreensão é em referência aos índices de suicídio estatisticamente elevados nesta região do país; “[a] causa não é a pobreza, porque muita gente bem na vida marca um encontro com a corda, a caçadeira, o veneno (605 forte) ou o poço.”

Na observação deste fenómeno parece sempre perplexo e incomodado com a ausência de juízo com que os alentejanos o encaram. É ilegítimo porque os homens pertencem aos deuses? O autor procede sempre na assunção de que não tem de se explicar. E eu sou tentado a crer que as considerações que faz estarão infetadas por um qualquer trauma de infância que resultou da observação de um Pollock a vermelho de sangue sobre uma parede caiada de branco.

Porventura em exorcismo de sinais, escreve que “[a] linhagem do velho Alentejo termina aqui o seu caminho, não passará para as minhas filhas”. (pág. 97)

Mas Rentes de Carvalho volta a ter razão mais uma vez porque o autor apenas julga ter-se descartado do Alentejo; já nos agradecimentos menciona a “Marta”, uma prima por quem ao longo de todo o livro desprende uma ilimitada admiração e de quem acaba a dizer: “Para mim, a ‘Marta’ é o Alentejo” (pág. 106)

Só por um nada não é a última frase do livro.

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