sábado, 14 de janeiro de 2017

counter stricke

A epifania aconteceu-me quando carregava uns bons quilos de material, máquinas e tripés distribuídos pelos ombros e ambas as mãos. A miudita saltitava de canadianas à minha frente. Antecipo-me e, com uma perna, abro-lhe a porta armada em mola. Aguardo que avance e ela nada. No limiar da porta que educadamente lhe abria, avançava um pintas de mãos nos bolsos em calma assassina. Atiro-lhe às pernas os tripés que segurava com um dos braços e pergunto-lhe: “olha lá, meu cabrão, achas mesmo que é para ti que eu estou a segurar a porta?”
Já tinha reparado no estranho fenómeno da minha invisibilidade para catraios que me davam pela cintura. Na rua, nas lojas, em qualquer lugar, esta estranha geração de bípedes parece agir na assunção de que o mar vermelho da realidade física se abre à sua frente sem orações ou cajado. Não sei se por efeito de um número exagerado de sessões de counter stricke, se por efeito de progenitores confusos ou por qualquer outro fenómeno antropológico que não me dou ao ócio de tirar a limpo, esta geração de pubescentes põe um olhar vidrado no infinito e avança a direito como se todos os outros seres tivessem a materialidade de um holograma.
Foi desde esse episódio da miudita de canadianas que decidi passar a fazer rigorosamente a mesma coisa.  Tudo em cima da muito divertida vantagem de antecipar os resultados. Para quem como eu, ainda não padece de artroses e monta na vantagem de algum caparro, é só riçar ombros e vê-los a fazer ricochete em movimentos taralhoucos de piusca mal lançada. Porque, apesar de tudo, ponho algum cuidado na coisa, raramente se esbardalham pelo chão. Quando levam telemóvel à altura dos olhos vidrados, paro sem me afastar. Para que os danos me não sejam imputados.
Ontem à tarde vem-me um deles mais despachado de trás de mim em movimento em “u” pela minha frente no preciso momento em que avançava com uma das pernas que ficou suspensa para não o rasteirar. De repente, arrependo-me do cuidado e empurro-o com ambas as mãos. Estendido de costas, meio sorriso na boca e dedo em riste, acusa-me de ter feito de propósito. Sem conter o riso, digo-lhe que não, foi sem querer. Estendo-lhe a mão para o levantar e dou-lhe uma sapatada nas costas, na força calculada daquele limiar ambíguo do toma lá para aprenderes e da palmada amistosa.
Já depois de me deitar, lembro-me do episódio e não consigo parar de rir. Gostei do puto. Tinha coluna vertebral.

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