quinta-feira, 13 de abril de 2017

pudor profano





















A memória que por lá tenho de mais desandada é a de uma imensa secura e o horror de como lhe tentei pôr termo. Terá sido em Agosto. Em todo o caso num dia anormalmente quente, de uma luz de soldadura. Lembro o terreiro do santuário, uma gigantesca frigideira de que me abriguei na expetativa de um fresco na basílica. A certa altura vejo uma pia de água benta e lanço-lhe as mãos em concha que despejo na boca encortiçada. No preciso momento em que o faço, visualizo todas as velhas e ulcerados por cujos dedos aquela água terá passado antes de chegar à minha boca. E espirro-a violentamente. E expulso furiosamente toda a saliva que consigo e imagino que por lá tenha ficado. Indiferente a Deus, a crentes e boas maneiras, queria fugir dali para longe.
Hoje voltei lá.
Deixei a minha mãe na fila das confissões. Aquilo é como nas finanças, parece que há senhas de vez e tudo. Por muito breves instantes interroguei-me acerca do que a minha mãe poderia ter para confessar. Disse imediatamente para mim mesmo que era assunto lá dela e combinámos que me ligava quando se tivesse despachado. Abalei dali na expetativa de fazer meia dúzia de fotografias mas não cheguei a fotografar nada do que gostaria de ter fotografado. Porque aquilo que é realmente fascinante na fotografia decorre da observação da humanidade em tudo aquilo que temos de maior e mais frágil, no devassar da intimidade em que nos tornamos semelhantes. E isso, eu não sei fazer. Mesmo munido de lentes que me permitem fotografar a uma confortável distância. Sinto pudor em ver os outros, guardo-os da devassa dos meus olhos. Não fora isso e teria feito fotografias ternas ou cruéis, devassas em qualquer dos casos.
O que mais me tolhia os olhos era, por exemplo, o receio de me dar ali a olhar uma mulher, a perscrutar-lhe o rosto e de repente dar comigo a ver se era boa de mamas. Não, não, não vou olhar, não vou ver nada, disse eu assim para mim mesmo.
Voltei à basílica.
Ladeando os genuflexórios, passo os olhos pelos desajeitados relevos a ilustrar a via-sacra e junto à porta, separada de todos, vejo uma mulher jovem de um moreno exótico. Em visão periférica, vejo-a ajoelhada sobre a pedra do chão, descalça.
Gostava muito de ter sido capaz de lhe olhar atentamente o rosto.


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