quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

a otan e os gastos na defesa da europa

Um texto de Miguel Morgado publicado ontem online  desenvolve duas ideias mais ou menos recorrentes que considero fundamentalmente erradas e passo a comentar

1. A ideia de que “[a] Europa fingia que não tinha problemas de segurança que exigissem a existência de forças armadas eficazes, e muito menos a disposição cultural para defender pela força das armas a sua independência e a sua liberdade.”

Na realidade a Europa não tinha nem tem hoje verdadeiros problemas de segurança que derivem de ameaças externas. Além da dos próprios EUA. Que depois de fragmentarem a Iugoslávia centraram na Ucrânia o seu confronto imperial com a Rússia. A Rússia pós-Gorbachev, depois da dissolução do pacto de Varsóvia, é um inimigo que nos vem sendo vendido pelos EUA. A guerra por procuração que impuseram à Europa e à Rússia na fronteira desta com a Ucrânia faz parte da teoria. Nunca foi uma ameaça real senão a partir da “revolução” laranja. As tensões que no passado deram origem a tantos conflitos entre os estados europeus foram largamente mitigadas com as suas adesões à UE. E não é só a Europa que vive uma paz das nações. O mundo vive consideravelmente em paz e o que remanesce de conflitos é largamente o que deflecte das heranças do colonialismo e da doutrina imperial americana já sem mundo ou condições morais de exercício. Neste contexto, a OTAN, com evidencia de enormes sinais de cansaço, para mais não serve senão para oferecer honorabilidade diplomática a operações militares realizadas à revelia do direito internacional.
É assim perfeitamente compreensível que nunca tenhamos sentido uma grande “disposição cultural para a defender pela força das armas”.

2. A ideia de que “… ano após anos todos os Estados-membros da UE praticamente sem excepção se tornaram especialistas a vigarizar as contas exigíveis dos gastos em defesa – os famosos 2% do PIB em despesas globais com a defesa e os convenientemente esquecidos 20% dessa despesa em equipamento militar.”

A única vigarice foi a de os líderes europeus contemporizarem com a ideia de risco que ia sendo vendida aos seus eleitores sem realmente acreditarem nela. Mas há boas e poderosas razões para terem procedido assim. A partir de certa altura – com Reagan - a administração americana abandonou a ideia de que o poder militar e a hegemonia tinham custos e substituiu-a por uma outra, menos benigna e muito mais barata, em que essas coisas têm um preço que pode e deve ser facturado em nome das nações “ocupadas”. Como nos tempos de Sun Tzu. Isso acontece não porque lhes pareça razoável, mas porque deixaram de ter dinheiro para pagar a factura. Não o admitem, mas isso já não é segredo para ninguém.
Num livro editado já há mais de uma década, Brzezinski dedica uma terceira parte ao assunto da hegemonia americana. Que intitula por “The world after America: by 2025, not chinese but chaotic”. Aí pode ler-se: “Enquanto uma crise repentina e massiva do sistema americano produziria uma rápida reação em cadeia levando ao caos político e econômico global, a uma deriva constante da América em direção a uma decadência cada vez mais generalizada e/ou a uma guerra infinitamente mais ampla com o Islão dificilmente produziria, mesmo em 2025, a 'coroação' de um sucessor global eficaz. Até lá, nenhuma potência estará pronta para exercer o papel que o mundo, após a queda da União Soviética em 1991, esperava que os Estados Unidos desempenhassem. Mais provável seria uma fase prolongada de realinhamentos um tanto inconclusivos e um tanto caóticos do poder global e regional, sem grandes vencedores e muitos mais perdedores, em um cenário de incerteza internacional e até mesmo de riscos potencialmente fatais para o bem-estar global.”*
O texto procede na análise de estimativas e projecções comparadas (EU, UE, China e Japão) e é só aí que, por momentos, Brzezinski parece um pouco menos sombrio. Sucede que a China em pouco mais de 10 anos superou todas as estimativas, a única coisa em que Brzezinski não parece ter sido extraordinariamente premonitório. Porque depois continua com a enumeração dos estados geopoliticamente mais ameaçados - dos quais o Paquistão é o único que ainda vai escapando aos noticiários -, e vai até a um capítulo que designou por “Fim da boa vizinhança”. Exactamente. Referindo-se ao México e ao Canadá.

3. como gastar

Se a Europa andou bem no modo como não investiu na OTAN - fundamentalmente dedicada à defesa de interesses exógenos depois do fim da guerra fria – precisa agora de investir numa solução defensiva partilhada em exclusivo pelos estados membros da União Europeia e em função de um cenário geoestratégico em que os EUA enfrentam o seu crepúsculo enquanto superpotência. Um investimento ponderado na proporção dos riscos e exclusivamente em benefício das indústrias europeias. Com os meios de defesa a serem considerados em função do seu real valor em situações de conflito. Evidentemente, a gestão dos orçamentos militares é competência de painéis de especialistas militares. Mas algumas explicações devem ser dadas. Não se compreende, por exemplo, o que leva á compra de um modelo de avião militar por um grande número de estados europeus (também com compra mais ou menos anunciada por Portugal), que não é produzido na Europa, que é considerado mau e que tem preço de aquisição e custos operacionais considerados absurdos por especialistas respeitados. Não se compreende igualmente que se pondere ganhar as batalhas de hoje com os meios de defesa da II guerra mundial. Enfim, mais uma vez, sendo assunto para especialistas em defesa, continuo sem compreender que se invista em blindados quando até os carteis mexicanos usam drones para os destruir... E sendo tão sofisticado o armamento americano, não se percebe que tenham perdido todas as guerras em que os usam. Talvez com a excepção da invasão da ilha de Granada. No âmbito da campanha para a reeleição de R. Reagan.
____________
*Zbigniew Brzezinski ,“Strategic Vision – America and the crisis of global power”, Basic Books , 2012, p. 78

Sem comentários:

Enviar um comentário