Não viu, mas contaram-lhe tão bem a história de São Jorge e o cão que é como se estivesse lá estado. E é possível garantir de boa fé que foi assim: Em Vera Cruz, aldeia antiga do Alentejo, apareceu um dia um homenzeco possuído pelo demónio. Até aí nada de extraordinário. Era costume aparecerem por lá pessoas possuídas pelo mafarrico, pois que a terra é reconhecida pelos exorcismos inspirados nos poderes espirituais do seu padroeiro. Dirão os mais entendidos nessas coisas do sanctum sanctorum que São Jorge - pois é ele o padroeiro - tinha mais queda para as pelejas que para o esconjuro. Assim postas as coisas, também ele desconfiou. E, como quem não quer a coisa, perguntou a alguns habitantes da aldeia que achou sentados ao fresco de uma árvore na lateral da igreja:
"-Então, de todas essas almas em dor que engolem do demónio, qual a terra de onde chegam mais?"
Depois de uma longa pausa em jeito de quem pondera o assunto, alguém se atreveu a garantir que era de Monção que chegava o maior número de camionetas com almas possuídas. Enfim, a maior parte vinha lá de cima, do norte, acrescentou. Mas o que tinha de especial o sujeito era a maneira singular no seu modo de estar possesso, procedendo em tudo como se fora um cão.
"-Mas um cão, como?", Perguntou com dúvidas.
"-Pois no modo que de uso é o dos cães. Senão, repare" -disse outra testemunha idosa que parecia ser dona de todo o juízo que alguém saudável pode ter:
"-Mal saiu da camioneta disparou em direcção àquele silvado como se tivesse farejado coelho".
Parecendo-lhe que aquilo era pouco, perguntou:."-E ficou lá?"
"-Não, depois veio sentar-se aqui neste banco", Responderam.
Como tivesse esboçado um sorriso condescendente, precipitaram a exposição de detalhes menos equívocos. Afinal de contas, o gajo podia simplesmente ter sido acometido por impreterível necessidade atrás das silvas.
"-Não, nada disso!", Juraram dois velhinhos com extraordinária firmeza.
"-Em primeiro lugar, o tipo trazia um baraço ao pescoço, tal como os cães. Depois, não falava, ninguém percebia o que dizia o gajo, aquilo era mais rosnar do que falar".
E como não parecia convencido, os velhotes vergaram a mola a 45º, fecharam as mãos em jeito de patas, e juraram que era assim que ele andava. Depois calaram-se à espera que dissesse de alguma dúvida. Mas já estava embaraçado num silêncio convencido, enviado a imaginar as artes do padre Silvério Farinha na invocação da força de São Jorge em favor do possuído, lá no espaço da bela igrejinha de Vera Cruz.
"-Então e depois?"
"- Depois? Depois o gajo enfiou-se ali no Canoilas, mamou uma lata de atum, bebeu um copo de tinto e abalou na camioneta em que tinha vindo."
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