Os !kung são (foram?) um povo bosquímano – palavra de origem ocidental usada para os designar indiferenciadamente – que habita(va?) o sul-sudeste de Angola. “!kung” era o termo que usavam para se designarem a si próprios.
Eram (são?) caçadores. E nunca entenderam a ideia de animal enquanto propriedade de alguém. Quando os povos banto – outro termo de origem ocidental, usado para designar cerca de uma centena de povos distintos - chegaram ao seu território, com as suas manadas de gado, não é difícil imaginar o que aconteceu: os povos bantos não entendiam que eles não entendessem que o seu gado não era alimento a consumir pela caça.
Esta incompreensão deu origem à mais assanhada ira dos proprietários que chegavam à terra dos cungues. Mataram, perseguiram, expulsaram das suas terras e escravizaram um povo que se descrevia a si mesmo “como ‘povo inofensivo’, ou ‘zhu twa si’, no seu dialeto. Chamavam aos bantos ‘zosi’, o que significava ‘animais sem casco’ e rotulavam-nos de perigosos e malévolos como as hienas e os leões.” (p. 32) Esta animosidade foi alimentada durante séculos.
Na região de Cuando-Cubango, esse povo era trocado e vendido como gado e mantido como escravo pelos bantos. (p. 131) E quando a guerra de Angola se propagou ao leste do país, os cunges acharam ter tudo a ganhar em colaborar com o colonizador que combatia os que os colonizavam a eles.
Começaram por colaborar com o exército português como pisteiros. Por simples observação do solo conseguiam dizer se por ali tinha passado homem, mulher, criança ou idoso, se a mulher estava grávida ou se o homem ia carregado.
Progressivamente foram sendo utilizados na recolha de informação. Em caso de contacto com independentistas, estavam instruídos para os capturar e trazer vivos para interrogatório, “…além de recolher toda a documentação e armamento na sua posse.” (p. 131) À primeira coisa nunca deram ouvidos. Os cungues não faziam prisioneiros.
Viriam a constituir uma força paramilitar, os “Flechas” de que falavam alguns militares que regressavam à metrópole. Cheguei a ouvi-los na minha infância. Murmuravam os “Flechas” no mesmo tom de quem fala de coisas sobrenaturais. Em missão, preferiam não ser acompanhados pelos soldados portugueses. Os portugueses eram incapazes daquele silêncio que é ferramenta de caça e construída de berço. E o odor das pastas dentífricas e dos cremes de barbear embotava-lhes o olfato. As rações de combate eram embaraço de pés; água e alimento eram artes mágicas que aconteciam a caminho.
Vários fatores terão estado na origem dos “Flechas”. Na origem da estima, admiração e lealdade para com os portugueses terá estado um homem idoso, Manuel Pontes, administrador da região do Cuando-Cubango. Íntimo das “Terras do Fim do Mundo”, Manuel Pontes terá lutado durante largos anos para que os cungues tivessem “os mesmos direitos e regalias que os outros na área sob a sua administração.” (p. 133) Um afeto que era retribuído pelos cungues que o apelidavam de “Tata !Kung”, “pai do povo cungue”. (p. 133).
Com a intermediação de Manuel Pontes, Óscar Cardoso -agente da PIDE/DGS e profundo conhecedor da região, também ele – viria a constituir os “Flechas”.
Suspeito que “Os Flechas – A tropa Secreta da PIDE/DGS na Guerra de Angola”, de Fernando Cavaleiro Ângelo (ed. Casa das Letras, 2017), podia ser um livro de extremo interesse, acerca de um extraordinário povo com quem fizemos uma guerra e que vergonhosamente abandonámos à sua sorte. Em meu entender, não é. É abundante em estatísticas, menções de documentos secretos, um montão de ossos de arquivo militar em exercício académico. Sem a forma e alma que lhe podia ser dada pelo testemunho de gente que ainda é viva.
Concordo; sobretudo com o último parágrafo.
ResponderEliminarJá com o acordês é que não...
"Já com o acordês é que não..."
ResponderEliminarEu também não...
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