quinta-feira, 13 de abril de 2017

de como a fé não me abençoou na altura certa


Já o havia aqui dito e estava a falar a sério quando disse que foi por via de um estore avariado. O meu pai entendia que eu era indigno da chave do seu castelo. Em cuja construção eu tinha participado na qualidade de servente de pedreiro. Tinha determinado que se me confiasse uma chave eu iria perde-la. Era realmente uma possibilidade mas também não era mais nada que um pretexto para poupar os escudos de a mandar fazer para uma criatura que não lhe podia ser mais indiferente. De maneira que fizesse chuva ou sol, chegasse a que horas fosse, eu só tinha que esperar que alguém chegasse a casa.
Isso aconteceu apenas durante algum tempo. Porque no dia em que me passei com aquilo decidi que seria o último. No dia seguinte deixei uma janela fora de trinco e à noite subi o estore empurrando-o para dentro da caixa, empurrei a janela e saltei para dentro de casa. Como tinha antecipado, quando os meus pais e a minha irmã chegaram, acharam tudo de natural e ninguém se perguntou se eu teria entrado por baixo da porta como se fosse envelope.
E foi sendo assim até ao dia em que o estore se avariou. Ora, a indiferença do meu pai pela minha pessoa durava apenas o tempo em que nada se avariava. De maneira que, a transpirar ansiedade, lá desaparafusei a tampa do estore e amanhei concerto atempado. Mas tudo aquilo me pareceu de uma tremenda injustiça. Não do meu pai mas nem mais nem menos do que uma divina injustiça. Fora Deus a sujeitar-me àquela provação.
Por essa altura já me tinha como pessoa em decência e, por consequência, à luz dos meus rudimentos de moral e religião católica, acreditava-me em certos direitos. Deus falhara-me e eu fiz-lhe um ultimato. Mental. Ele era omnipresente e portanto também estaria na minha cabeça, não precisava de ir a uma igreja apresentar o meu caso em maior formalidade. Afinal de contas tratava-se apenas de assegurar o bom estado mecânico da porra de um estore. Se no dia seguinte o estore voltasse a pregar-me alguma partida, então, meu amigo, Tu vais à Tua vida e eu vou à minha.
Avariou.
E nem me atormentei com o caso. O meu pai que o amanhasse.

Sem comentários:

Enviar um comentário