sexta-feira, 9 de agosto de 2019

"Sendo certo que cada povo tem a cultura que pode - a que o temperamento, a religião, o meio e as condições socioeconómicas lhe permitem -, era de esperar que o português não fugisse à regra. E ei-lo em Coimbra a dar expressão pessoal e própria às coisas do espírito, culminando essa expressão, como é natural, na sua Universidade.
Mesmo materialmente se lê nela como num livro aberto. Um conglomerado de estilos sem cunho próprio, o mau gosto ao lado do melhor equilíbrio, a fachada brilhante a encobrir saguões. E sedutora, no fim! Ao cabo e ao resto um casarão para ensinar campónios, que se não espantam ao encará-lo, quase revendo nele adereços do cenário da origem: uma grade de Marvão, uma varanda minhota, um alpendre beirão, e janelas manuelinas de Freixo de Espada à Cinta.
Isto, só nas paredes. Porque na alma, no cerne, o caso é talvez mais flagrante ainda. Na índole do que ensina, existe, persistente, a marca das coisas cabeçudas e provincianas. O tratado reduz-se a sebenta, a tradição a praxe, o saber a erudição. Não há um invento, um ideia, uma teoria que tenha nascido ali. Mas nem os inventos, nem as ideias, nem as teorias são necessárias a uma Universidade que se basta no simples facto de o parecer aos olhos da ignorância colectiva. Por isso se defende com unhas e dentes de toda a originalidade, de todo o pensamento subversivo, recusando-se obstinadamente a pôr de lado a borla e o capelo da mistificação e a abrir nos seus muros medievais um postigo sequer que deixe entrar qualquer luz actual. Seria o pânico, a catástrofe, a desautorização. E sempre que algum reformador exaltado faz obras e remove estatutos, o instinto de conservação repõe sornamente o musgo secular nas cátedras da sapiência."

Miguel Torga, Portugal, ed. Leya, 2015, pág. 63

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