sexta-feira, 24 de julho de 2020

“Lá tive, em dada altura, como os outros do meu curso, de me sujeitar às aulas de Medicina Legal. Aí pontificava, também no sarcasmo, o Professor Arsénio Nunes. Sempre com uma bata encardida de nódoas suspeitas, encarava com profundo desdém aqueles estudantes de Direito, inacreditavelmente ignorantes, cheios de horror aos mortos, alheados das manchas de sangue, das impressões digitais, dos livores cadavéricos, dos tiros de caçadeira ‘embalados’. Apontava para uma maca onde jazia uma vítima nua com uma etiqueta num pé e explicava: ‘Isto, meus senhores, é um cadáver. É preciso não confundir um cadáver com um defunto. Um defunto é respeitável, atam-lhe um lenço aos queixos, choram-no. Um cadáver é uma coisa em que se mexe!’
Nunca consegui adaptar-me a este ponto de vista mas fiquei a saber que ele existia.
Tenham ao menos os professores de agora a consolação de saber que o que dizem e fazem , fica (às vezes perversamente) assinalado por uma vida inteira. Sempre é uma pequenina imortalidade…”


Mário de Carvalho, O que eu Ouvi na Barrica das maçãs, Porto Editora, 2019, pág. 248

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