sexta-feira, 19 de abril de 2019

coisas que eu não gosto

Dizer como somos é uma tentação estúpida mas não resisto à ideia de me descrever pelas coisas que odeio. Dizermo-nos pelas coisas de que gostamos é uma coisa nojenta. E ainda mais estúpida. Por exemplo: podia dizer que gostava do mar. Mas depois penso que por gostar tanto dele, de norte a sul, ia morrendo afogado em várias ocasiões da minha infância. Está bem de ver que nessas ocasiões o mar é uma coisa raivosa, funda, escura e sem graça nenhuma. Ou dizer que gosto de música. As meninas a pensar que nos encontramos em tony carreira e eu a pensar que nos embrulhamos com seigen ono ou qualquer coisa assim. Não.
Odeio tuk-tuks, ciclistas a namorar no meio da estrada, palhaços da escola Tété ou de Frankfurt, multidões, putos com os cornos enfiados nos telemóveis que não se afastam à minha passagem, pessoas que não se comovem com coretos, pessoas que saúdam com “namasté” (que é “olá, estás bom?” mas em estrangeiro), pessoas que contavam os cigarros que eu fumava, pessoas que me querem falar de astrologia com ar muito sério (ou da aura, ou do reiki, ou lá o que são essas merdas em que tanta gente se banha hoje em dia), comboios a fingir (aqueles pequerruchos que circulam em pneus no meio das cidades e onde calha haver turistas, estão a ver?), eucaliptos, caniches tosquiados em pompom, aipo, "intelectuais de esquerda" (não são todos?),  fazer a cama, não chegar a horas, suíços (suíças, desconfio que não), pessoas que me queiram esfregar conhecimento do que só a elas ou a outrem diz respeito, Marcelo Rebelo de Sousa, nouvelle cuisine, Algarve, os gajos que “acham” que eu tenho de ser acionista da tap (…,da rtp e coisas assim), cabrões sem maneiras, natal, carnaval, filas para museus, música “ao vivo”, o ar agastado do empregado de mesa quando me pergunta se sou só eu para jantar, o ar desconfiado quando o rececionista do hotel me ouve dizer “quarto para um”, Benidorm, noruegueses (norueguesas, não sei…), o meu pescoço queimado do sol, trambolhões de mota, refeições e pessoas insonsas ou sonsas, Marcelo Rebelo de Sousa, anchovas, não conseguir parar quando abro um pacote de bolachas, ser tímido … e oh, meu deus, estou a gostar disto, é melhor parar.
Gosto de mulheres (ai... nesta confissão incorro no mais deplorável mau hábito dos meus contemporâneos [a compulsão por fazerem público aquilo que só a eles diz respeito... Eu não disse que isto era uma tentação estúpida? Ah, já sei porque é que isto aconteceu, porque me esqueci de que comecei por dizer que era nojento descrevermo-nos pelas coisas de que gostamos]) , mas agora voltamos à vaca fria porque como o mar, também elas sabem ser raivosas, fundas, escuras e sem graça nenhuma. As mulheres. E gosto de viajar. Mas da última vez que o fiz, cheguei de barco a uma ilha e meia hora depois estava a comprar um bilhete extravagantemente caro para voar de volta a casa. Era uma ilha muito bela, mas estava um calor dos diabos naquela manhã. Oh, não, não, é melhor não falar das coisas de que eu gosto.

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