domingo, 8 de novembro de 2009

de como o mundo encolhe assustadoramente

Para ele a coisa tornou-se irrefutável quando numa noite de Agosto se abeirou do avião. Primeiro com espanto, depois com apreensão e finalmente com um entusiasmo completamente imbecil quando se deu à condição de passageiro. É que nunca tinha voado num DC-3. Ao que parece ainda existem algumas centenas que estão perfeitamente operacionais embora tenham deixado de ser produzidos por volta de 1945. As bochechas nos pneus do trem de aterragem, o lixo e as ervas daninhas em volta deles, o aeródromo que mais se assemelhava a um princípio de urbanização deixado às ortigas e ao entulho, isso foram algumas das coisas em que reparou naquela parte em que fiquou apreensivo. 

A luz amarelada de candeeiros razoavelmente afastados não deixava ver grande coisa. Dava para apreciar a cabine, o nariz apontado ao céu escuro e uma fuselagem que parecia contrariada em terra. E essas foram as coisas que o deixaram na tal euforia imbecil que o fez avançar. Os outros passageiros – que devem ter experimentado o mesmo espanto e apreensão mas com juízo suficiente para não irem além dessas coisas - ao verem a sua afoiteza devem ter pensado que “aquele senhor deve saber imenso de aviões” e acabaram por avançar também, embora um pouco pensativos.

Acomodaram-se nos lugares com a colaboração de um tipo que manejava uma lanterna porque o avião estava completamente às escuras. As luzes só se acenderam com algumas hesitações no momento em que o piloto ligou os motores. Enfim, digo que eram os motores mas também podia ser o barulho de um desses geradores que os feirantes usam para as barracas de farturas. Estava muito cansado, viajara de autocarro durante toda a tarde e parte da noite com uma paragem em Alcácer do Sal por via da sede e de umas bifanas. O avião abanou, julgou ver um tipo com ar de arrumador a pendurar-se numa das asas, mas estava escuro e pensou que aquilo era por causa de alguma coisa que tinha bebido. Adormeceu sem pensar mais no assunto, apesar do barulho.

Chegaram de madrugada a um aeródromo em tudo semelhante àquele de onde haviam partido. 

Um autocarro velho e com matrículas desenhadas em papelão levou-os para o hotel nos arredores de Žarnovica por uma estrada de terra batida. A velhota que seguia a seu lado remordeu qualquer coisa em desabono do Fidel a pretexto de “miseráveis infraestruturas” e “de qualquer modo, para a frota de automóveis que eles têm…” Tudo isto a fingir que falava para a neta porque ele não se deu ao trabalho de lhe lembrar que não estava em Cuba e que “os comunistas” já não mandavam na Eslováquia.

O hotel tinha algumas semelhanças com os que se podem ver em Bratislava, com a diferença de que só tinha rés-do-chão, uma coisa a arremedar um desses estaleiros que se fazem por alturas da construção de autoestradas e estádios de futebol. Tirando isso a zona era agradável, basicamente um prado com um eucaliptal ao fundo. Era esquisita aquela coisa do eucaliptal. O eucaliptal e a azinheira que havia perto da recepção, mas não ligou.

Passou os quatro dias com uns livrecos ao sol, sentado numa daquelas cadeiras de plástico injetado. Para além das bebidas mais comuns em qualquer parte do mundo, havia Adega Cooperativa de Borba (tinto), Macieira e Licor Beirão. O pessoal parecia não falar mais nada além do eslovaco ou lá o que aquilo era mas, para seu espanto, também parecia não ter dificuldades em compreender o português. Por uma razão qualquer, o pessoal sujeitava-o a uma espécie de segregação, evitando o seu convívio com os outros hóspedes o que lhe calhou que nem ginjas já que o destino fora criteriosamente selecionado a fim de minimizar as possibilidades de tais convívios. Ainda assim, ao terceiro dia não houve modo de evitar a velhota toda esbaforida a perguntar pela Zaida.

"- Não, não vi a pequena mas não pode estar longe porque isto é pequeno." - disse ele.

"-Ai aquela rapariga. Já viu o que o regime faz nestes lugares para turistas? Nem sequer empregam o povo nestes hotéis para eles não verem como é no ocidente; só há russas, ucranianas, romenas e aquela brasileira que trabalha na cozinha. Cubanos, nem um. Por falar em cozinha, não me lembro de alguma vez ter comido uns pezinhos de coentrada como os que comi ontem.

- Pezinhos de coentrada??

-Ó larócas, pezinhos de coentrada. E se estavam bons… Um pouco puxadinhos para os meus intestinos, mas valeu a pena.

-Puxadinhos???

-Sim, picantes. Os meus intestinos barafustam com o picante."

Essa foi a única ocasião em que se exaltou. Abalou dali direitinho ao refeitório e gritou:

"- Com que então, pezinhos de coentrada, não é? E puxadinhos! E para mim só há a porcaria dos bitoques, não é?"

Nesse dia comeu pezinhos de coentrada – que estavam maravilhosos, foi preciso reconhecer – mas essa foi também a única ocasião em que fingiram não compreender o que ele dizia.

Nunca mais pensou neste assunto da Eslováquia até há dias quando reconheceu a velhota na televisão a denunciar a agência de viagens:

"- Andava eu à procura da minha Zaida, vejo um homenzinho e pergunto-lhe: “Ha visto mi chica?” Foi aí que eu percebi que não estava em Cuba mas na Herdade da Ribeira Seca, no Alentejo."


Bom. Ele não se queixou. A viagem fora barata e os pezinhos estavam ótimos. A ideia é excelente embora tenha sido comprometida por algum amadorismo na execução, pensou. Afinal de contas, custava assim tanto mandar fazer umas chapas de matrícula ou abdicar do Licor Beirão?

A única coisa que o enfureceu em toda aquela história foi a grosseira obstinação da cabra da agência ao impingir-lhe o destino de Cuba quando ele queria ir para a Eslováquia.

5 comentários:

  1. Apesar das palmas qie se ouvem em fundo já encomendei uma missa, Saramago me perdoe.

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  2. Olhe, parece que o nosso -Mos está à brocha com um ataque dos paneleiros anónimos unidos, por via de ter chamado paneleiro ao Descodificado. Temo pela vida dele. É que Anónimos Paneleiros soa-me a Milícias. A ver se lhe damos uma mãozinha.
    Ass.: Mongol.cigana

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